16 anos de Blue Bus

Charge para o Jornalistas & Cia

A história desta semana é de Cristina Vaz de Carvalho, editora de J&Cia no Rio de Janeiro.

Nos anos 1990, Jornalistas&Cia, recém-criado com o nome de FaxMoagem, circulava com uma ou duas páginas, e ainda era distribuído por fax. Na época, a chamada grande imprensa ainda não cogitava montar uma redação para a mídia digital. O máximo de avanço que existia era a digitalização do acervo. Mais tarde, passaram a veicular o noticiário em texto corrido, como fez o Jornal do Brasil, com pioneirismo, nos bons tempos.

Porém, alguns visionários veiculavam por conta própria notícias exclusivamente na web. Julio Hungria, de Blue Bus (www.bluebus.com.br), inicialmente dirigido a leitores do mercado publicitário, foi um deles. Abriu os trabalhos como uma BBS (aos muito jovens: um software que permitia ao usuário postar e baixar dados, e trocar mensagens com outros usuários, geralmente por conexão telefônica).

Aos poucos, apareceram redações de bom tamanho, produzindo notícias que não se destinavam a serem impressas em papel, nem veiculadas em áudio ou vídeo. Marcos Sá Corrêa, que montou e dirigiu o NO. (Notícia e Opinião, a ser lido como “no ponto”) foi um pioneiro. Mas, no noticiário do J&Cia, jornalistas que viessem de redações tradicionais eram encaixados nas notas como tal.

Certa vez, em conversa com Julio Hungria, Cristina comentou um fato qualquer, que seria, para ela, uma novidade. Julio protestou: “Mas vocês já publicaram isso na sua seção de internet”. Seção de internet? Haveria, no escasso espaço físico da publicação em que eu trabalhava, uma seção que eu não conhecesse?

Ligou então para seu editor, Eduardo Ribeiro, contou a história, e perguntou: tinham mesmo essa seção? Eduardo respondeu de imediato: “Se o Julio diz que temos, é porque temos”. A partir de então, o J&Cia passou a separar as notícias da web na seção que hoje leva o título de Sites, blogs e afins.

Blue Bus celebra, no dia 29 de novembro, 16 anos em circulação. É amigo de fé e irmão camarada do J&Cia, desde então – ambos nascidos muito próximos, na mesma primavera.

A lição de Geraldo Nunes

Charge para o Memórias da Redação que agora sai não apenas no Jornalistas & Cia como também no o Portal dos Jornalistas.

A história abaixo é contada por Luiz Roberto de Souza Queiroz, o Bebeto.

“Já lá se vão alguns anos, desde quando a madrinha dos cegos Dorina Nowill me pediu que entrevistasse deficientes de sucesso. Fazia parte da campanha cujo objetivo era tirar de casa, onde viviam enfurnados, as centenas de milhares de cegos que não se arriscavam a buscar a chamada inclusão social.

Corporativista, como todo jornalista, procurei um “coleguinha” com restrição de mobilidade, Geraldo Nunes, da Rádio Eldorado que, durante meia hora contou, nos estúdios da Fundação Dorina, como sua mãe sofrera ao ouvir dos médicos que o filho jamais seria capaz de andar, como ele resolveu e conseguiu desmentir os médicos com muito esforço, dos erros e acertos, até que um dia se tornou independente e capaz de andar sozinho.

Contou também da dificuldade para estudar, já que até hoje caminha com duas muletas, dos problemas que teve com as mãos, problemáticas, de como foi difícil, baixo e trôpego, se impor nas coletivas até que descobriu que sua voz forte supria a falta de agilidade. Encantou a todos contando como valorizou a voz que o tornou conhecido, como se sujeitou a fazer os programas de rádio da madrugada, problema menor, porque nunca dormiu bem.

Geraldinho explicou que estuda permanentemente, especializando-se na história de São Paulo, de como se tornou o “Repórter Aéreo”, a bordo do helicóptero no qual sempre teve dificuldade para subir e com o qual caiu na Marginal do Tietê, sem que esse acidente lhe tirasse a vontade de voar.

Foi uma história emocionante e ele ensinou aos milhares de cegos que nos ouviram que eles são pessoas como as outras, que os direitos são os mesmos, apesar da deficiência e que essa, no fundo, é só um motivo a mais para lutar e vencer.

Passaram os anos e em meados de outubro entrevistei duas cegas, “cobaias” do primeiro curso brasileiro de Especialização Olfativa. A ideia é que, sem enxergar e, portanto, sem distrações como a cor do perfume, o formato da embalagem, o cego pode “tornar-se todo nariz”. Dominar os aromas a ponto de identificar em cada aula 50 cheiros diferentes, de temperos a produtos químicos, passando por alimentos e bebidas, capacitando-se ao longo de um ano de estudo muito puxado a trabalhar com as misturas de álcool, essências e demais produtos que, misturados cuidadosamente, compõem os perfumes os quais, combinando-se com o odor de cada pele, vão deixar a mulher com um cheiro único e irresistível.

A entrevista interessava muito, porque a especialidade é uma das poucas em que os cegos tem melhores condições de vencer do que nós outros, que eles chamam de videntes. E a prova é que, embora ainda estudando, as alunas do curso já são sondadas para empregos na indústria de cosméticos.

Como sempre, me aproximei das deficientes visuais e me apresentei: “Eu sou o Bebeto, e mais que uma entrevista nós vamos é conversar sobre o curso, porque o escolheram, o que estão achando…”. E fui cortado por uma delas que disse não ser necessária apresentação alguma: “Eu me lembro bem da sua voz e da entrevista maravilhosa que você fez com o Geraldo Nunes, da Rádio Eldorado, que nos ensinou a lutar e a não desistir nunca”.

A deficiente visual disse isso e, desinibida, foi usando a bengala-longa para avançar pelo corredor acústico e estreito até o minúsculo estúdio. Fiquei um pouco para trás pensando que, tantos anos depois, eu tivera a oportunidade de ver nas duas moças o fruto da árvore cuja semente o Geraldinho plantou. E pensei que é muito bom ser repórter e viver momentos assim.”

Pena Branca o Barra Pesada

Charge para o Jornalistas & Cia

A história dessa semana sobre o repórter investigativo Octávio Ribeiro é narrada por Dirceu Martins Pio. Confiram abaixo:

“Um internauta leu Barra Pesada, comprado num sebo, e hoje faz uma pergunta desesperada pela web: “Alguém tem notícias de Octávio Ribeiro?”. Vários outros internautas fazem comentários sobre a pergunta, mas sem conseguir respondê-la, até que um deles posta a informação, lacônica, seca, com cheiro de impiedade: “Octávio Ribeiro morreu em julho de 1986”. E fim. É irônico isso: existem pouquíssimas notícias sobre um homem que passou a vida a produzir notícias.

Ai das pessoas que viveram e morreram na fase da pré-internet. Suas façanhas, seu talento, seus ensinamentos, por mais extraordinários que tenham sido, serão enterrados junto com seus ossos. A memória de adolescentes e jovens, hoje, é a própria web.

Descubro por acaso, outro dia, que o jornalista Octávio Ribeiro, o Pena Branca (tinha esse apelido por causa de uma mecha de cabelo branco que surgiu no alto de sua testa desde tenra idade) virou nome de rua em São Paulo. Trata-se de uma ruazinha, meio perdida no mapa da cidade, ali na Vila Bela Vista, no bairro Cachoeirinha. É um dos casos típicos em que a homenagem fica aquém do homenageado. Octávio Ribeiro merecia ter dado nome à mais importante avenida de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Ou à praça mais grandiosa.

Ninguém para reeditar o seu deslumbrante Barra Pesada; ninguém para postar uma biografia competente na Wikipédia; ninguém para emular o seu talento de melhor repórter policial que o Brasil já conheceu. Dá para concluir pelas páginas dos jornais: Octávio Ribeiro está morto, definitivamente morto.

Quem o conheceu em vida ou leu Barra Pesada – que ainda pode ser encontrado em alguns sebos ao preço de R$ 9 – vai descobrir o quanto são falhas as teorias levantadas pelo malcozido debate em torno da qualidade do jornalismo. Uma delas diz que o jornalista tem de ser altamente intelectualizado, um devorador de livros. Octávio Ribeiro era um homem inteligente, arguto, mas simples, pouco letrado. Era para ter sido bancário no Rio de Janeiro, onde nasceu, mas derivou para o jornalismo quase por obra do acaso. Era movido pela perspicácia e pela curiosidade – estas, sim, características exigíveis de todo jornalista que se preze.

Entrou para desvendar e resolver praticamente todas as grandes histórias policiais dos anos sessenta e setenta. Fez muita falta no levantamento do Mensalão do Governo Lula e também em casos como o do assassinato do PC Farias (1996); do prefeito de Campinas, Toninho dos Santos (2001); do prefeito de Santo André, Celso Daniel (2002); ou ainda da pequena Isabela Nardone. São casos que permanecem envoltos em mistério talvez por falta de policiais – ou repórteres – verdadeiramente investigativos.

Ao republicar a longa entrevista que Octávio Ribeiro concedeu ao Pasquim, Barra Pesada reconstitui, com muitos detalhes, a sua trajetória de repórter policial. Barra Pesada tem, contudo, poucas informações sobre sua técnica de apuração, que era magnífica. No início da década de 1980, quando ele já havia abandonado as redações para transformar-se numa espécie de repórter cigano, eu me encontrei com ele em Curitiba, onde permaneceu por alguns meses hospedado na casa de amigos e ansioso por encontrar algum assunto em que pudesse atuar. Eu mesmo indiquei a ele o caso Darlene, uma jovem professora de origem alemã  assassinada a pedradas num terreno baldio de Curitiba, no alto de um morro.

O assassínio de Darlene ocorrera três anos antes da chegada de Octávio Ribeiro à cidade. A polícia havia prendido e acusado como autor do crime um homem baixinho, atarracado, morador de uma favela nas proximidades do local. Chamava-se Lira (nem me lembro o sobrenome). Confessou o crime na fase de inquérito e negou na Justiça sob alegação de que havia sido torturado pela polícia. Foi condenado. Eu chefiava a sucursal do Estado de São Paulo e do Jornal da Tarde no Paraná e havíamos tentado investigar o caso, mas desistimos porque os jornais não se interessaram pela história. De qualquer modo, havíamos percebido que o caso fora muito mal apurado pela imprensa local e havia vestígios de manipulação pela polícia.

Octávio Ribeiro interessou-se pelo caso Darlene, fez um acordo com uma editora local para produzir uma revista e se jogou de cabeça na apuração. Acompanhei de perto toda ela, como colaborador e admirador de Octávio Ribeiro e ao lado de outro jornalista, Mauro Bastos, também interessado em contribuir com o levantamento. Eu e Mauro somos, enfim, testemunhas de que ao longo da investigação do caso Darlene Octávio Ribeiro realizou inúmeras façanhas inimagináveis por qualquer repórter da época.

Começou pela leitura minuciosa do processo e não demorou muito para identificar várias falhas no laudo pericial, realizado por dois legistas formados pela Universidade Federal do Paraná. Sua primeira façanha foi reunir os dois jovens legistas com aquele que havia sido um de seus professores na universidade, o qual não apenas confirmou as falhas apontadas por Octávio Ribeiro como passou todo o encontro a dar bronca atrás de bronca em seus dois ex-alunos, sem se importar com o constrangimento de estarem na frente também de um repórter investigativo.

Depois de demolir o laudo pericial, Octávio Ribeiro foi visitar o local do crime, no topo de um morro a menos de quatro quilômetros do centro de Curitiba. Reparou que havia lá em baixo, nas margens da rodovia BR 116, um núcleo urbano – lojas de comércio e uma indústria de baterias. Desceu até lá, obteve os primeiros depoimentos que combatiam, com clareza, a culpabilidade de Lira: várias pessoas do núcleo assistiram ao crime a uma distância inferior a mil metros. Viram quando o assassino desceu do morro e tomou um ônibus ali à beira da BR 116: era um jovem magro, claro, franzino, cabelo cortado “escovinha”, quer dizer, um perfil oposto ao do condenado, que era moreno, baixo, forte, barrigudo.

Ao negar a autoria, Lira alegara na Justiça que no dia em que o crime foi praticado encontrava-se em Morretes, cidade litorânea, onde participava junto com mais de 40 trabalhadores da limpeza de um terreno. Pena Branca fez os cálculos: devido à distância, não haveria tempo de Lira subir para Curitiba, matar a professora e voltar para Morretes. O crime fora praticado por volta do meio-dia. Entendeu, portanto, que se fosse possível comprovar que Lira trabalhava em Morretes no dia do crime ele seria automaticamente inocentado.

Viajou então para Morretes. Em poucas horas, descobriu que houve sim um mutirão para limpeza de uma fazenda no período em que o crime fora praticado. A comida servida aos trabalhadores era preparada na área urbana e levada em marmitas até a frente de trabalho. Seu raciocínio: a cozinheira deveria ter uma relação de todos os homens e, quase com certeza, conferia nome por nome antes de despachar as marmitas, enviadas na contagem exata. Procurou pela cozinheira. Soube que havia se mudado para Curitiba. Conseguiu o endereço, voltou para Curitiba e descobriu que a mulher deixara seus pertences num comodozinho aos fundos de uma residência e viajara para o município da Lapa. Viajou para a Lapa (a 120 km de Curitiba), encontrou finalmente a cozinheira. Havia sim um caderno de anotações, mas que havia sido deixado no “quartinho” de Curitiba. Trouxe-a no carro a Curitiba e obteve suas anotações: o nome de Lira estava lá. Lira recebeu sua marmita no dia do crime, de modo que, sob nenhuma hipótese, poderia ter almoçado em Morretes, subido de ônibus para Curitiba, cometido o crime na hora do almoço e voltado para se incorporar à frente de trabalho.

Pena Branca entrevistou a psicóloga de Lira no presídio, que também estava convencida da inocência de seu paciente. Conseguiu revelar também que Lira foi um simples bode expiatório de um delegado de polícia com o qual, inclusive, fizera um acordo ao ser preso: uma vez condenado, tudo seria feito para que obtivesse liberdade condicional em poucos anos e após deixar a cadeia receberia de presente uma chácara em Paranaguá onde poderia passar toda a vida na tranquilidade.

As inúmeras provas da inocência de Lira não foram suficientes para reabrir o caso, que sempre esteve envolvido por “pressão oculta”, disparada, provavelmente, pelo verdadeiro autor do crime ou por sua família. A própria editora que imprimiu a revista sobre o caso fraudou o acordo com Octávio Ribeiro e pôs em circulação menos de 100 exemplares dos milhares com os quais havia se comprometido.

Publicada a revista, Pena Branca partiu para outras cidades e outras aventuras. Soube que fez a primeira entrevista com o jogador Tostão (depois de haver abandonado o futebol, por causa de um acidente nos olhos, Tostão se recusava a falar à imprensa); que esteve na Itália investigando um caso que envolvia a Máfia. Voltava de uma viagem à Amazônia onde descobrira várias usinas de coca implantadas em território brasileiro quando teve de ser internado em hospital do Rio de Janeiro. Teve um tumor de pulmão que se espalhou pelos demais órgãos vitais. De Curitiba, falei com ele por telefone a poucos dias de sua morte. Tivemos o seguinte diálogo:

– Coragem, rapaz, você é forte e com certeza vai escapar dessa.

– Não sei não, meu amigo, estou com vários tumores corroendo meu corpo por dentro.

Não consegui ir ao seu enterro. Jamais poderia imaginar que suas lições de jornalismo pudessem ser esquecidas em tão pouco tempo.”

O fim e o recomeço do Notícias Populares

Charge para o Jornalistas & Cia

A história dessa semana é de Marcos Sergio Silva que foi editor do finado Notícias Populares.

O Notícias Populares era conhecido por suas manchetes nada sutis. Seu slogan era “Nada mais que a verdade” e trouxe um estilo de jornalismo sem pudores que causou muita polêmica no meio jornalístico. Desprezado por alguns pelo tom apelativo e adorado por outros pelo bom humor, chegava até a inventar casos como o célebre “Bebê-diabo” ou o desaparecimento de Roberto Carlos. Circulou em São Paulo de 1963 até ser interrompido no ano 2001, quando o Grupo Folha decidiu migrar seu jornalismo popular no Agora São Paulo, mas com um estilo mais sissudo e sem o mesmo descaramento que marcava o Notícias Populares.

Hoje em dia, o Meia-Hora é considerado um herdeiro deste tipo de jornalismo no Brasil.

Narrando o inenarrável

Charges para o Jornalistas & Cia

Duas charges seguidas sobre o mesmo assunto: a infame foto da Lílian Ramos, primeira dama de ocasião do Itamar Franco, que desfilou sem roupas íntimas na Sapucaí no carnaval de 1994 e provocou a chamada “Crise da Calcinha”. Lançou moda muito antes de Britney Spears, vejam bem…

O caso veio à tona em relatos de  Nora Gonzalez e Carlos Oliveira, que trabalhavam no Estadão na época, e contam sobre a dúvida do jornal em publicar ou não a foto com a dita cuja da primeira dama exposta.O Estadão, no fim das contas, decidiu ser educado e não publicou a dita fot, mas a mesma saiu em praticamente todos os jornais no dia seguinte…

A pequena indomável

Charge para o Jornalistas & Cia

História enviada por Plínio Vicente da Silva.

Em meados de 1985 Plínio a conheceu. Tinha um olhar nervoso e inquieto, gestos irrequietos, próprios dos que estão permanentemente em busca de algo que não sabem exatamente o que é. Essa era a menininha de então, que circulava entre os adultos como se não existissem barreiras e obstáculos capazes de detê-la e de impedi-la de se libertar do ambiente em que vivia.

Não adiantavam os ralhos da mãe, nem mesmo as ameaças de fazê-la prisioneira no seu quarto. Ela reagia a tudo isso com uma energia extraordinária para uma criança de tão pouca idade, tamanha a intensidade do vigor físico e da agilidade mental.

Era alguém predestinado a se fazer pela genialidade, exclusiva de poucos, cuja dimensão e alcance transformam os escolhidos em lendas e os eleitos em figuras eternas e inesquecíveis.

Os anos se passaram, a vida seguiu em frente e, como é inevitável, as pessoas envelheceram. A menina ranzinza, obedecendo aos ditames do tempo, igualmente foi se transformando, chegando à adolescência. Contudo, com o mesmo vigor e igual impaciência trazidos do passado. Foi essa energia, muitas vezes incompreendida, que a fez romper os grilhões que prendiam sua alma em Boa Vista. Ganhou o mundo e embrenhou-se pelo emaranhado dos caminhos que havia de escolher, pois neles estavam as respostas de que precisava para confrontar as dúvidas que carregava consigo. Valente, corajosa, destemida, as foi desvendando uma a uma até que, finalmente, presenteou sua alma indomável com a liberdade que ela implorava bem lá atrás, ainda na primeira infância.

Foi estudar fotografia na Universidade Nacional da Costa Rica. Lá mesmo aprendeu desenho e depois, de volta a Roraima, entregou-se ao conhecimento da cultura e dos costumes indígenas. Ao poucos foi vencendo as procelas no mar revolto, sua própria vida, e atravessou o oceano que separa o perguntar e o questionar do descobrir e do entender.

Com o passar dos anos se transformou numa sensível pesquisadora, que se lançara em busca de respostas para os segredos que encontrara no universo. Capacidade essa que a fez uma espécie de sacerdotisa da natureza, capaz de decodificar para o olhar dos seres comuns os detalhes mais intrincados dos mistérios que se escondem sob o manto das árvores, da profundeza das águas dos rios e do mais recôndito recanto das almas nativas.

O tempo se foi, os anos percorreram o calendário e a menina, que um dia tive nos braços na vã tentativa de enxugar as lágrimas teimosas, pranto inconformado brotando dos seus olhinhos inocentes, conquistou definitivamente sua liberdade. Não no lavrado e nem nas florestas, mas bem longe, do outro lado do mundo.

Dias atrás, Plínio a reencontrou pela internet. Ana Lúcia Mendina guarda ainda as feições da menina que conhecera certa noite na casa de sua mãe, Vera Regina Guedes, advogada e uma das melhores e mais confiáveis fontes que conquistei como jornalista do norte do Brasil. O olhar continua penetrante, o sorriso segue sendo um misto de perguntas e respostas. Entretanto, o que mais encantou a Plínio, na soma das emoções que esse reencontro lhe provocou, foi saber pelo seu blog – anamendina.blogspot.com – que, além de fotógrafa competente, ela é hoje uma respeitada artista plástica, vivendo bem longe, lá na Oceania.

Depois de morar na Austrália, conhecer os aborígenes e inspirar-se com seus usos, costumes e cultura, mora hoje em Tauranga, uma ilha da região norte da Nova Zelândia. Suas pinturas vêm recebendo elogios quer pela beleza plástica, quer pela criatividade, quer pelo olhar impar que tem para a natureza e os seus elementos. Ao falar de sua exposição, que recebeu o título de Brazilis, o jornal The Wekend Sun destacou que os 14 trabalhos de Ana – que trazem também cenas do imaginário popular urbano tupiniquim –, exploram os diferentes aspectos da cultura brasileira, mas em especial da cultura dos povos da Amazônia. Ao mesmo tempo em que introduz em seus quadros símbolos neozelandeses, ela os usa para conectar a iconografia aborígene do povo maori com aquela que conheceu na convivência com índios do Norte.

Feliz é aquele que no curso da vida tem o privilégio, como eu tive, de ver nascer a genialidade num ser humano como Ana Lúcia Mendina. Sou ainda mais feliz por ter testemunhado, há mais de 26 anos, o alvorecer de um espírito que jamais se rendeu ao óbvio e à mesmice e que, com grandeza, atravessou continentes e travou inúmeras batalhas em busca do seu destino. Mas basta debruçar o olhar em suas telas para a gente perceber que a menina irrequieta continua inquieta. Inquietude que, certamente, é quase toda ela alimentada pelos temores e os tremores que lhe causam os estragos que a humanidade tem feito na natureza, no meio ambiente e no habitat em que os índios ainda conseguem sobreviver no seio das florestas acima e abaixo da linha do Equador.

Ana continua sendo a mesma menina de alma indomável. É o que se pode testemunhar ao visitar o site www.aucklandmuseum.com, espaço sagrado das artes na Nova Zelândia que deu abrigo não só à exposição de seus quadros, mas também à palestra e exibição de documentário em que ela fala apaixonadamente da Amazônia, da sua beleza, dos seus índios e da sua luta pela sobrevivência.

O chá do Zetti

Charge para o Jornalistas & Cia.

A história dessa semana é de Oswaldo Braglia Jr. da equipe do próprio Jornalistas & Cia.

Esta é um caso verídico sobre os bastidores do processo que acabou inocentando o ex-goleiro do São Paulo e hoje técnico Zetti (Armelino Donizetti Quagliato) da acusação de doping por cocaína em 1993. Naquele ano, o Brasil enfrentou a Bolívia, lá nos Andes, pelas eliminatórias da Copa dos Estados Unidos. O exame antidoping deu positivo e ele foi suspenso pela Fifa. Mas a CBF conseguiu provar que ele havia tomado chá de coca para aliviar os efeitos da altitude e a suspensão foi revogada. Como isso aconteceu?

Bem, uma semana antes Oswaldo havia estado em La Paz, cidade incrustada numa cratera há mais de 3 mil metros de altitude. É comum, em qualquer hotel por lá, haver um chá à disposição dos hóspedes, que eles chamam de soruche, feito com folhas de coca, que ajuda a superar os efeitos da altitude andina; aliás, todas as cidades da região põem à disposição dos visitantes o tal “chazinho”. Mas não há nenhum aviso sobre do que ele é feito! Oswaldo até comprou uma caixa, com cerca de 40 sachês, para trazer a São Paulo, mais pela curiosidade que o produto causava como aspecto cultural do que para consumo propriamente dito.

Em sua sala no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, do qual era então gerente administrativo, Oswaldo viu a notícia sobre o goleiro do São Paulo e suas declarações de que “jamais usara drogas ou produtos correlatos”, abalado pelos exames e pela suspensão às vésperas de Copa do Mundo.

O diretor do Sindicato Luiz Augusto Michelazzo, o Mick, ligou logo depois para falar de assuntos da entidade e Oswaldo aproveitou para perguntar: “Mick, quer dar uma força para o Zetti? Seguinte: estive na Bolívia semana passada e sei exatamente qual o problema”. Explicou e disse a ele que tinha uma caixa de chá de coca.

Luiz mandou um carro do jornal e distribuiu aos coleguinhas a matéria de estudo.

Resumo da ópera: todos beberam o chá, fizeram exame antidoping e, todos, sem exceção, deram positivo para cocaína. A caixa do chá até saiu numa foto de Veja, vários jornalistas noticiaram o caso, Zetti foi absolvido das acusações e fomos tetracampeões nos EUA.

Mas Oswaldo nunca mais viu um saquinho do seu chá.

Carlão Mesquita e a edição de Esportes do Estadão

Charge para o Jornalistas & Cia

A efêmera Edição de Esportes do Estadão, lançada em 1964 para se contrapor à Gazeta Esportiva, foi, de fato, um ensaio para o lançamento do Jornal da Tarde, que a iria absorver.

A montagem de uma equipe de jornalistas comandada por Mino Carta, a capacitação do parque gráfico para rodar um segundo jornal no domingo (para cobrir os acontecimentos esportivos, que a então inexistência do Estadão na 2ª.feira tornava necessária), a organização de todo o esquema de distribuição e a inovação do texto consistiu na infraestrutura que facilitaria o lançamento do JT.

No momento em que a redação montava a primeira edição, entretanto, o “alvo” era justamente a Gazeta Esportiva e a pequena redação tinha como desafio rodar o jornal antes do concorrente. Isso acabou sendo possível e foi uma festa, com toda a equipe nas oficinas, Tão Gomes Pinto, Hamiltinho Almeida, Emilio Matsumoto, entre eles, e ganharam por pouco mais de uma hora.

Carlão Mesquita, que era o diretor da Edição de Esportes, ficou tão entusiasmado com essa pequena vitória que jogou dois pacotes do jornal ainda “quentinho” dentro de um jipe velho, chamou mais dois editores, foi para a avenida Cásper Líbero, estacionando diante da saída das rotativas do concorrente. Carlão saltou do jipe e, Edição de Esportes na mão, dirigiu-se à dúzia de jornaleiros que esperavam a saída da Esportiva, para vender na Augusta, na Paulista e na Boca do Luxo. Num comício improvisado, Carlão distribuiu exemplares do novo jornal e tentou convencer os jornaleiros de que fariam melhor negócio se nos domingos à tarde passassem a vender a Edição de Esportes, porque a Esportiva já era, garantia.

Num domingo de decisão de campeonato, Mino Carta resolveu que a Edição de Esportes tinha que sair a tempo de ser vendida na porta do estádio do Pacaembu, onde se disputava a final.

Era claramente impossível, mas a liderança do Mino fez a redação inteira topar o desafio e ninguém discutiu. Como o jogo parecia decidido no começo do segundo tempo, a primeira página foi fechada com o resultado parcial (felizmente mantido até o final da partida) e foi assumido o risco de rodar alguns milhares de exemplares com um primeiro clichê, ficando uma equipe a postos para trocar a manchete se o jogo mudasse.

Mais uma vez Carlão e alguns membros da redação pegaram o jipe e seguiram para estádio do Pacaembu. Carlão gritava as manchetes, contava que o jornal já vinha com o resultado do jogo, conseguiu ser cercado por torcedores que disputavam o jornal sem se incomodar com o troco, que é claro, jornaleiros neófitos, não tínhamos pensado em levar.

A interdição de Fausto Macedo

Charge para o Jornalistas & Cia

A história dessa semana é de Francisco Moacir Assunção Filho.

Quando começou a trabalhar no Estadão, lá pelos idos de 1999, Francisco foi apresentado a Fausto Macedo.

A mesa do Canalha (apelido de Fausto) era a mais bagunçada de todo o jornal. Ali, se acumulavam processos inteiros da Polícia Federal, investigações do Ministério Público, ações de toda ordem e documentos importantes. Era tanta coisa que a redação brincava dizendo que ele poderia usar as pilhas de documentos como casamatas em caso de um absolutamente improvável ataque aéreo contra o jornal ou, até, se esconder atrás caso o chefe quisesse passar mais uma missão além das que já tinha. O mais curioso é que ele, mesmo assim, encontrava tudo o que precisava, deixando todo mundo pasmo com a sua capacidade de (des)organização. Era tanta coisa que, certa vez, um diretor da Polícia Federal fez uma visita à sede do jornal e disse, brincando, que ia mandar apreender os documentos porque lá, com certeza, estavam as últimas operações da PF e eram papéis sigilosos.

Francisco resolveu então, brincar com o Canalha. Junto com um colega, desceu até o andar térreo do prédio do Estadão, onde funcionava o setor dos bombeiros civis e da manutenção, e pediu que lhe arrumassem um pouco daquela fita amarela e preta usada para, por exemplo, isolar áreas em obras. A desculpa é que precisava do material para fazer uma reforma no muro de casa e mantê-lo isolado dos vizinhos. Gentilmente, o rapaz me deu um pacote inteiro da fita.

Voltou à redação e passou a fita em volta da mesa e da cadeira do Fausto que, naturalmente, estava na rua atrás de mais uma matéria que certamente iria para a capa do jornal. Além disso, fez um cartaz, impresso no computador, no qual aparecia a frase “interditado pela Defesa Civil”. Colocou lá uma lei que, claro, não existia, mas era a número tal, fundos, como se fosse o endereço de uma casa, e deixou a fita lá, isolando toda a área onde ficava o Fausto, inclusive com os documentos oficiais. Colado na frente, o papel dizia que as pilhas eram uma ameaça à segurança e à saúde pública. Havia até risco de desabamento, como brincava o colega Daniel Bramatti: “Basta ver o que houve no Morro do Bumba”, dizia, em referência ao morro cujo desabamento causou uma tragédia em Niterói, no Rio de Janeiro. Bramatti sempre alegava que ele seria a primeira vítima do deslizamento da Encosta do Macedo, como batizou as pilhas de papéis do Fausto, já que se sentava em frente à mesa do colega repórter.

Pois bem, isolado e cercado o local, ficou observando, junto com outros colegas de redação, a reação das pessoas, enquanto esperava a “vítima”. Fez até várias fotos para mostrar o momento em que conseguimos, enfim, interditar a mesa do Canalha. Os colegas paravam, olhavam aquela cena e riam. Todos achavam engraçada a tal da interdição, até porque tinha gente que dizia que devia ter até ratos e baratas embaixo das pilhas de papel do Fausto, então devia ser tirado de circulação mesmo.

Teve gente que parou, fez algum comentário como “já não era sem tempo”, pensando que era de verdade, outros somente riam e passavam direto sem falar nada e até o então editor-chefe Marcelo Beraba (hoje na sucursal do Rio) foi, curioso, até a mesa do Canalha e sorriu muito ao ler o tal “decreto de interdição” da mesa dele. Estava impossível sentar-se lá, porque a cadeira também ficava na área de interdição a bem da saúde pública. Só faltava o próprio. Já eram umas 19h e nada do Fausto aparecer, para que pudessem ver a cara dele com a interdição.

Ligou para ele, dizendo que precisava que voltasse porque a chefia tinha passado uma matéria para os dois e tinham que combinar como fazer, depois inventou que havia uma pessoa o esperando na redação e nada. Outro colega telefonou para ele e disse que precisava contar algo pessoalmente e não adiantou. Passava das 21h, o jornal já fechado, e ele não aparecia. Os autores da arte, tiveram que ir embora porque já eram mais de 22h e chegamos à conclusão de que o Canalha não voltaria naquele dia e teríamos que adiar para o seguinte a rara oportunidade de ver a cara dele quando soubesse da interdição. Francisco tinha até um discurso pronto, no qual alegaria que não tive como impedir que a mesa fosse interditada, já que havia uma ordem expressa da Defesa Civil que não podia ser desobedecida.

Ao chegar de manhã, no dia seguinte, Francisco teve uma surpresa: a mesa do Fausto estava plenamente desinterditada, sem marca alguma do ocorrido no dia anterior, e a minha fechada e interditada, com a mesma fita amarela e preta. No cartaz preso na frente do computador que eu usava, uma frase escrita nos moldes da que deixamos no computador dele: “interditado por ordem da Secretaria de Saúde. Cachorro louco na área”, alertava, informando para os passantes terem muito cuidado com o tal bicho feroz (havia um desenho lhe representando).

Logo em seguida, o dito cidadão chegou, sorridente como sempre. Francisco perguntou se ele havia madrugado no jornal, já que eram pouco mais das 9 da manhã e haviam ficado até tarde o esperando para dar boas risadas. Ele contou, então, que sentira, pelo excesso de ligações, que havia um golpe em andamento e que o envolvia.

“Quando todo mundo começou a ligar, pedindo para eu voltar, percebi que era uma ‘cama de cabôco’ que estava armada para cima de mim”, explicou. Resolveu, por causa disso, adiar o regresso ao jornal, onde aportou por volta da meia-noite, quando não havia quase mais ninguém lá. Ao chegar, viu o cartaz e resolveu devolver a brincadeira, no que foi feliz. Francisco tentou tirar a fita, mas lhe convenceram a deixá-la lá até a hora do almoço, pelo menos.

Jesus vai de picanha na Sexta Santa

Charge para o Jornalistas & Cia

Antes que algum católico fervoroso queira me crucificar com essa releitura nada ortodoxa da Última Ceia, leiam a história dessa semana por Valdir Sanches.

Era Sexta-Feira da Paixão, feriado. Valdir Sanches perfilava entre os repórteres de plantão na redação do Jornal da Tarde. O Zé Maria de Aquino, no comando da redação, nessa manhã, lhe vem com uma pauta.

– Sanches, como estará o movimento nas churrascarias hoje?

Sem entender a proposta, Valdir responde.

– Churrascarias no feriado…

E lhe encarou com um olhar de “e então?…”.

Ah! Churrascaria num dia em que não se come carne… Sim, boa pauta! Solicitada a companhia de um fotógrafo embarcaram na viatura da reportagem.

Logo na Avenida Sumaré havia uma churrascaria, não muito grande, mas bem ajeitada. Entraram. Umas tantas mesas ocupadas. Escolheram pelo jeito o entrevistável, que parecia comandar a mesa com mais dois homens, e o abordaram.

– Somos repórteres do Jornal da Tarde…
O homem parou de comer sua picanha. Explicaram a matéria, ele entendeu o espírito da coisa. Tinha uma pequena empresa no bairro, e estavam trabalhando, mesmo com o feriado. Os outros dois eram seus empregados.

Vai aquela conversa boba, comer carne hoje, Sexta-Feira Santa? Que que tem, é coisa antiga, poucos ainda ligam, etc. etc.. Fotos do homem com seu prato de carne. Para não inibir, nessas situações, perguntam o nome no fim da entrevista.

– Como é o seu nome?

– Jesus Barbalho.

Barbalho? Puxa, o governador Jader Barbalho estava na crista do noticiário, acusado de irregularidades. Conversaram um pouco sobre isso, Valdir fez mais duas ou três perguntas, e sairam.

Na rua, o fotógrafo pede o nome do entrevistado, para identificar a foto. Valdir lê suas anotações e cai duro. Jesus Barbalho. O homem se chama Jesus! Se impressionei tanto com o Barbalho que não gravou o Jesus!
Avaliou se era o caso de voltar à mesa e interromper novamente o almoço do bom Jesus. Mas não, o que eu tinha estava bom.

Foram a mais duas churrascarias, embora a matéria já estivesse pronta. Numa delas, pergunta o nome do entrevistado.

– Ricardo Teixeira.

E não tinha nenhuma ligação com futebol.

Valdir voltou à redação contando logo que havia entrevistado Jesus comendo carne. Redigiu a matéria. Foi para um copy altamente criativo. Deu o título, para o alto de página: Jesus vai de picanha na Sexta Santa.

A redação se empolga. Matéria bem-humorada, diferenciada, acima do noticiário de estradas e cemitérios. Na época, o editor de Geral era um rapaz com jeito de Superboy, puro dinamismo. Mas fora de tom para um jornal como o JT. Leu o título, ficou inseguro – e o vetou.

Em seu lugar entrou alguma coisa opaca, que matou a página e o espírito da matéria. O texto, com algum molho, foi mantido. Mas não era a mesma coisa.