Pena Branca o Barra Pesada

Charge para o Jornalistas & Cia

A história dessa semana sobre o repórter investigativo Octávio Ribeiro é narrada por Dirceu Martins Pio. Confiram abaixo:

“Um internauta leu Barra Pesada, comprado num sebo, e hoje faz uma pergunta desesperada pela web: “Alguém tem notícias de Octávio Ribeiro?”. Vários outros internautas fazem comentários sobre a pergunta, mas sem conseguir respondê-la, até que um deles posta a informação, lacônica, seca, com cheiro de impiedade: “Octávio Ribeiro morreu em julho de 1986”. E fim. É irônico isso: existem pouquíssimas notícias sobre um homem que passou a vida a produzir notícias.

Ai das pessoas que viveram e morreram na fase da pré-internet. Suas façanhas, seu talento, seus ensinamentos, por mais extraordinários que tenham sido, serão enterrados junto com seus ossos. A memória de adolescentes e jovens, hoje, é a própria web.

Descubro por acaso, outro dia, que o jornalista Octávio Ribeiro, o Pena Branca (tinha esse apelido por causa de uma mecha de cabelo branco que surgiu no alto de sua testa desde tenra idade) virou nome de rua em São Paulo. Trata-se de uma ruazinha, meio perdida no mapa da cidade, ali na Vila Bela Vista, no bairro Cachoeirinha. É um dos casos típicos em que a homenagem fica aquém do homenageado. Octávio Ribeiro merecia ter dado nome à mais importante avenida de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Ou à praça mais grandiosa.

Ninguém para reeditar o seu deslumbrante Barra Pesada; ninguém para postar uma biografia competente na Wikipédia; ninguém para emular o seu talento de melhor repórter policial que o Brasil já conheceu. Dá para concluir pelas páginas dos jornais: Octávio Ribeiro está morto, definitivamente morto.

Quem o conheceu em vida ou leu Barra Pesada – que ainda pode ser encontrado em alguns sebos ao preço de R$ 9 – vai descobrir o quanto são falhas as teorias levantadas pelo malcozido debate em torno da qualidade do jornalismo. Uma delas diz que o jornalista tem de ser altamente intelectualizado, um devorador de livros. Octávio Ribeiro era um homem inteligente, arguto, mas simples, pouco letrado. Era para ter sido bancário no Rio de Janeiro, onde nasceu, mas derivou para o jornalismo quase por obra do acaso. Era movido pela perspicácia e pela curiosidade – estas, sim, características exigíveis de todo jornalista que se preze.

Entrou para desvendar e resolver praticamente todas as grandes histórias policiais dos anos sessenta e setenta. Fez muita falta no levantamento do Mensalão do Governo Lula e também em casos como o do assassinato do PC Farias (1996); do prefeito de Campinas, Toninho dos Santos (2001); do prefeito de Santo André, Celso Daniel (2002); ou ainda da pequena Isabela Nardone. São casos que permanecem envoltos em mistério talvez por falta de policiais – ou repórteres – verdadeiramente investigativos.

Ao republicar a longa entrevista que Octávio Ribeiro concedeu ao Pasquim, Barra Pesada reconstitui, com muitos detalhes, a sua trajetória de repórter policial. Barra Pesada tem, contudo, poucas informações sobre sua técnica de apuração, que era magnífica. No início da década de 1980, quando ele já havia abandonado as redações para transformar-se numa espécie de repórter cigano, eu me encontrei com ele em Curitiba, onde permaneceu por alguns meses hospedado na casa de amigos e ansioso por encontrar algum assunto em que pudesse atuar. Eu mesmo indiquei a ele o caso Darlene, uma jovem professora de origem alemã  assassinada a pedradas num terreno baldio de Curitiba, no alto de um morro.

O assassínio de Darlene ocorrera três anos antes da chegada de Octávio Ribeiro à cidade. A polícia havia prendido e acusado como autor do crime um homem baixinho, atarracado, morador de uma favela nas proximidades do local. Chamava-se Lira (nem me lembro o sobrenome). Confessou o crime na fase de inquérito e negou na Justiça sob alegação de que havia sido torturado pela polícia. Foi condenado. Eu chefiava a sucursal do Estado de São Paulo e do Jornal da Tarde no Paraná e havíamos tentado investigar o caso, mas desistimos porque os jornais não se interessaram pela história. De qualquer modo, havíamos percebido que o caso fora muito mal apurado pela imprensa local e havia vestígios de manipulação pela polícia.

Octávio Ribeiro interessou-se pelo caso Darlene, fez um acordo com uma editora local para produzir uma revista e se jogou de cabeça na apuração. Acompanhei de perto toda ela, como colaborador e admirador de Octávio Ribeiro e ao lado de outro jornalista, Mauro Bastos, também interessado em contribuir com o levantamento. Eu e Mauro somos, enfim, testemunhas de que ao longo da investigação do caso Darlene Octávio Ribeiro realizou inúmeras façanhas inimagináveis por qualquer repórter da época.

Começou pela leitura minuciosa do processo e não demorou muito para identificar várias falhas no laudo pericial, realizado por dois legistas formados pela Universidade Federal do Paraná. Sua primeira façanha foi reunir os dois jovens legistas com aquele que havia sido um de seus professores na universidade, o qual não apenas confirmou as falhas apontadas por Octávio Ribeiro como passou todo o encontro a dar bronca atrás de bronca em seus dois ex-alunos, sem se importar com o constrangimento de estarem na frente também de um repórter investigativo.

Depois de demolir o laudo pericial, Octávio Ribeiro foi visitar o local do crime, no topo de um morro a menos de quatro quilômetros do centro de Curitiba. Reparou que havia lá em baixo, nas margens da rodovia BR 116, um núcleo urbano – lojas de comércio e uma indústria de baterias. Desceu até lá, obteve os primeiros depoimentos que combatiam, com clareza, a culpabilidade de Lira: várias pessoas do núcleo assistiram ao crime a uma distância inferior a mil metros. Viram quando o assassino desceu do morro e tomou um ônibus ali à beira da BR 116: era um jovem magro, claro, franzino, cabelo cortado “escovinha”, quer dizer, um perfil oposto ao do condenado, que era moreno, baixo, forte, barrigudo.

Ao negar a autoria, Lira alegara na Justiça que no dia em que o crime foi praticado encontrava-se em Morretes, cidade litorânea, onde participava junto com mais de 40 trabalhadores da limpeza de um terreno. Pena Branca fez os cálculos: devido à distância, não haveria tempo de Lira subir para Curitiba, matar a professora e voltar para Morretes. O crime fora praticado por volta do meio-dia. Entendeu, portanto, que se fosse possível comprovar que Lira trabalhava em Morretes no dia do crime ele seria automaticamente inocentado.

Viajou então para Morretes. Em poucas horas, descobriu que houve sim um mutirão para limpeza de uma fazenda no período em que o crime fora praticado. A comida servida aos trabalhadores era preparada na área urbana e levada em marmitas até a frente de trabalho. Seu raciocínio: a cozinheira deveria ter uma relação de todos os homens e, quase com certeza, conferia nome por nome antes de despachar as marmitas, enviadas na contagem exata. Procurou pela cozinheira. Soube que havia se mudado para Curitiba. Conseguiu o endereço, voltou para Curitiba e descobriu que a mulher deixara seus pertences num comodozinho aos fundos de uma residência e viajara para o município da Lapa. Viajou para a Lapa (a 120 km de Curitiba), encontrou finalmente a cozinheira. Havia sim um caderno de anotações, mas que havia sido deixado no “quartinho” de Curitiba. Trouxe-a no carro a Curitiba e obteve suas anotações: o nome de Lira estava lá. Lira recebeu sua marmita no dia do crime, de modo que, sob nenhuma hipótese, poderia ter almoçado em Morretes, subido de ônibus para Curitiba, cometido o crime na hora do almoço e voltado para se incorporar à frente de trabalho.

Pena Branca entrevistou a psicóloga de Lira no presídio, que também estava convencida da inocência de seu paciente. Conseguiu revelar também que Lira foi um simples bode expiatório de um delegado de polícia com o qual, inclusive, fizera um acordo ao ser preso: uma vez condenado, tudo seria feito para que obtivesse liberdade condicional em poucos anos e após deixar a cadeia receberia de presente uma chácara em Paranaguá onde poderia passar toda a vida na tranquilidade.

As inúmeras provas da inocência de Lira não foram suficientes para reabrir o caso, que sempre esteve envolvido por “pressão oculta”, disparada, provavelmente, pelo verdadeiro autor do crime ou por sua família. A própria editora que imprimiu a revista sobre o caso fraudou o acordo com Octávio Ribeiro e pôs em circulação menos de 100 exemplares dos milhares com os quais havia se comprometido.

Publicada a revista, Pena Branca partiu para outras cidades e outras aventuras. Soube que fez a primeira entrevista com o jogador Tostão (depois de haver abandonado o futebol, por causa de um acidente nos olhos, Tostão se recusava a falar à imprensa); que esteve na Itália investigando um caso que envolvia a Máfia. Voltava de uma viagem à Amazônia onde descobrira várias usinas de coca implantadas em território brasileiro quando teve de ser internado em hospital do Rio de Janeiro. Teve um tumor de pulmão que se espalhou pelos demais órgãos vitais. De Curitiba, falei com ele por telefone a poucos dias de sua morte. Tivemos o seguinte diálogo:

– Coragem, rapaz, você é forte e com certeza vai escapar dessa.

– Não sei não, meu amigo, estou com vários tumores corroendo meu corpo por dentro.

Não consegui ir ao seu enterro. Jamais poderia imaginar que suas lições de jornalismo pudessem ser esquecidas em tão pouco tempo.”

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