Os tucanos de Honduras

Charge para o Jornalistas & Cia

 

A história dessa semana é de Plínio Vicente da Silva, que inclusive me deu um feedback muito bacana sobre a charge dizendo que acertei a fisionomia do Maxuíba mesmo sem ter tido referência sobre isso. Segue abaixo o relato impagável sobre uma controversa venda de aviões de guerra para Honduras na década de 1980.

Recém-chegado de São Paulo com a missão de instalar o escritório de correspondente do Grupo Estado no então Território Federal de Roraima, Plínio foi morar no mesmo bairro em que está até hoje, próximo ao aeroporto e rota de pousos e decolagens. Carioca, Estrella era o único repórter fotográfico profissional que atuava em Roraima e por isso passou a ser seu companheiro de trabalho.

Na manhã de 20 de maio de 1984, por volta das 10h30, Plínio cuidava de acender o carvão à sombra de um caimbezeiro em seu quintal quando viu quatro Tucanos T-27 passarem sobre sua casa, seguidos por um Electra.

Nessa época havia em Boa Vista apenas quatro aviões pequenos – o do Governo do Território e mais três táxis-aéreos – e aqueles T-27 não faziam parte da Esquadrilha da Fumaça, as cores eram diferentes. Foi então que o seu faro de repórter disparou o alarme. Liguou para o Estrella e em cinco minutos estacionaram na frente do Aeroporto Internacional de Boa Vista a fim de descobrir o segredo que havia por trás daqueles aviões.

Como não era horário de chegada ou partida do jato da Cruzeiro do Sul, as portas estavam escancaradas. O único militar de plantão era o velho Maxuiba, cabo da Polícia Militar, nascido José de Ribamar que àquela hora da manhã dormia e roncava sob um dos balcões por conta da ressaca que sobrara da esbórnia da noite anterior.

Quer dizer: não havia vigilância policial, nenhuma segurança armada e ninguém impediu seu acesso ao pátio. Até foram convidados pelo então superintendente da Infraero, Euclydes Monerat, leitor assíduo e admirador confesso do jornal da família Mesquita (que chegava em Boa Vista com dois dias de atraso), a visitar o interior do Electra, cuja carga reunia mísseis Piranha, metralhadoras ponto 50, munição e peças de reposição. Afinal, alertou Plínio, “essa notícia merece sair no Estadão”.

Enquanto Estrella fotografava o restante da carga do Electra e os Tucanos pintados com as cores da Força Aérea de Honduras e o brasão daquele país, Plínio foi ao bar do aeroporto e abordou o comandante da esquadrilha, coronel Armínio Gutierrez. Depois, o acompanhou até o Hotel Tropical (hoje Hotel Aipana), onde ia almoçar com sua tripulação, e lá ele entregou o jogo: o Brasil vendera oito Tucanos para seu país e aqueles eram os quatro primeiros do lote.

Plínio lembrou-se então que Honduras estava em guerra com El Salvador e uma resolução da ONU proibia a venda de armamentos e aviões militares para países localizados em zona de conflito. Para contornar o impedimento, o governo norte-americano negociou com o Brasil a venda dos Tucanos, considerados aviões de treinamento e, portanto, à margem da proibição. Mas que, depois de algumas adaptações, viravam uma poderosa arma de caça aos guerrilheiros.

Ligou para o especialista em assuntos militares e armamentos, Roberto Godoy, então chefe da sucursal do Grupo Estado em Campinas. Sua reação foi de espanto: “Cara!!! Você não sabe o que descobriu. Já sabíamos sobre esses aviões e há um mês a gente estava de campana em São José dos Campos a fim de confirmar a venda”. Como os Tucanos saíram de madrugada, ninguém viu. O que as autoridades não previram é que, por ser o último aeroporto internacional, as aeronaves teriam que, obrigatoriamente, fazer uma escala técnica em Boa Vista.

As fotos e a matéria, complementada pelo Godoy com todas as informações que ele já levantara, foram bater na redação do Estadão e do JT e viraram notícia de primeira página. No Estadão, na edição do dia 24 de maio, uma 5ª.feira. Assinada pelo próprio Godoy, que no texto da página 5 cita minha participação e a de Estrella no levantamento da matéria em Boa Vista, a noticia teve repercussão imediata. O Departamento de Estado norte-americano negou a transação, Honduras confirmou, o Itamaraty desconversou, a Embraer silenciou e Plínio acabou indo parar no quartel do 2º Batalhão Especial de Fronteira (precursor da atual 1ª Brigada de Infantaria de Selva).

Disseram que Plínio não estava indo preso, mas sim “convidado” pelo comandante, coronel de cavalaria Mirócem de Oliveira Elias, para prestar esclarecimentos ao Serviço Nacional de Informação, o temido SNI, que já vivia seu estertor. Dois agentes – Fregapanni, um coronel baixinho e careca, e Dienst, também coronel, um alemão enorme – vieram de Manaus com a missão de descobrir como eu tivera acesso a um segredo militar muito bem guardado na Embraer, em São José dos Campos (SP), e vazado num distante e solitário aeroporto da Amazônia.

Plínio lhes disse apenas que se valeu de duas armas para descobrir a presença dos aviões: seus olhos, diante dos quais desfilaram os Tucanos e o Electra, e o instinto natural da curiosidade, cujo cultivo recomendo a todo repórter, por se tratar de preciosa ferramenta de trabalho. Foi por isso, levado pelo instinto de repórter, que considerou a estranheza daqueles objetos sobrevoando Boa Vista na manhã de um dos meus domingos.

Depois da reportagem e de toda a repercussão causada dentro e fora do Brasil, o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Délio Jardim de Matos, determinou a imediata construção da Base Aérea de Boa Vista.

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