Charge para o Jornalistas & Cia
A história da semana é de Plínio Vicente da Silva. Segue abaixo o curioso relato:
“Bem acima, na borda superior do mapa do Brasil, ali à esquerda da Guiana, mais pro lado da Venezuela, a gente vê uma espécie de ponta. É onde está localizado o marco zero das três fronteiras, fincado pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon ainda na primeira metade do século passado. É também nesse espigão geográfico, o mais setentrional do território brasileiro, que brota da encosta do monte Roraima, berço de Macunaíma, o mítico rio Uailan, que mais embaixo vai ajudar a formar o Cotingo.
Ainda hoje, mesmo com estradas em boas condições, não é fácil chegar ao alto Cotingo. Mais difícil ainda é alcançar a corrutela do Suapi, a minúscula vila onde uma das lendas do garimpo de Roraima instalou seus domínios. Foi nesse vale distante que o mineiro de Ponte Nova Levindo de Oliveira se tornou um dos maiores caçadores de diamantes da Amazônia. Foi, durante décadas, um dos principais fornecedores de pedras preciosas para casas de lapidação do sudeste do País. Jóias que, depois, foram alimentar a vaidade de ricaços e ricaças mundo afora.
Contam os historiadores locais que no começo do século XX havia duas coisas em profusão em Roraima: gado e diamantes. Em 1906, garantem pecuaristas pioneiros, o rebanho roraimense de zebuínos era o mais puro plantel de nelores já criado em território brasileiro, reunindo de mais de 400 mil cabeças. Já os diamantes nunca ninguém soube contar quantos foram. Saiam de avião em malotes transportados por seguranças armados. Junto com eles sabia-se que, ao lado de muitas outras de menor valor, iam as pedras mais famosas e mais bonitas entre as que já foram encontradas no subsolo da região: os fantásticos diamantes cor-de-rosa.
O velho Levindo criou fama não só por ter faro apurado para essas pedras. Era também um filósofo, um sábio, capaz de, como poucos, entender os sentimentos que passeiam pelos labirintos da alma humana. Falava manso, nunca levantou a mão para alguém e sempre resolveu as pendengas – inclusive as querelas entre suas mulheres – com uma boa conversa, coisa que mineiro sabe fazer bem, e uma salomônica competência para tomar decisões.
O que mais me marcou nesse desbravador sertanejo foi um fato ocorrido logo nos primeiros tempos depois da minha chegada em Roraima, em meados dos anos 80. Certo dia, sabendo que ele subiria a serra para fazer pesquisas no Cotingo, pedi-lhe que me levasse junto. Em princípio rejeitou. Deu-me como razão minha deficiência nas pernas, que me faria sofrer muito, já que as condições de locomoção seriam as mais difíceis, sacrificantes mesmo. Argumentei que não pretendia andar por qualquer canto e que minha idéia era ficar no acampamento, observando, convivendo com ele e seus faiscadores. No máximo poderia me aventurar a pequenas distâncias, até onde minhas limitações o permitissem. Então ele pensou, pensou e porque acho que gostava mesmo de mim e das nossas conversas, acabou concordando.
Dias antes, ao saber da viagem, havia vendido a idéia ao Caderno 2 do Estadão, editado na época pelo Luiz Fernando Emediato. Como argumento usei o fato de que se tratava de oportunidade rara para uma reportagem mostrando os primeiros passos de uma caça aos diamantes, feita num dos cenários mais cinematográficos da Amazônia.
Feito os acertos, lá fomos nós, sacolejando num velho jipe pelas veredas esburacadas. Saímos na manhã de uma segunda-feira e depois de muito rodar, com um pernoite na vila do Mutum, na tarde da terça-feira chegamos finalmente ao Suapi.
Éramos seis: Levindo, quatro faiscadores e eu. O acampamento se resumia a uma barraca sustentadas por pernas mancas e coberta por uma velha lona, sob a qual se acomodavam as redes, a gente e as tralhas. A cozinha, instalada ao ar livre, ficava na beira do rio. Tudo bem calculado, pois não havia risco de chuva, já que era a estação da seca, e nem de incêndio. Para lavar a louça, então, bastava dar alguns passos até a corrente cristalina.
Levindo fez a janta, o pessoal comeu e nem bem começou a escurecer foi todo mundo se deitar. Por dois motivos: o cansaço da viagem e a necessidade de acordar bem cedo, pois ao primeiro clarão do dia começaria o trabalho de faiscagem.
Estendido na rede, com o sono dando já seus primeiros sinais, procurei pelo velho e não o vi. Havia desaparecido. Espantei o sono e esperei, remoendo a curiosidade. Voltou talvez não mais que meia hora depois, seguido por uma índia visivelmente já na terceira idade. Com todo o respeito que merece o ser humano, ela tinha tantas e tamanhas rugas que seu rosto mais parecia casca de maracujá ressequida, mostrando os efeitos da perda do viço da juventude e dos mimos da segunda idade. Mandou que se acomodasse numa rede que instalara sob a copa de um caimbezeiro e pouco depois, vigiados por uma nesga de lua crescente pendurada no céu estrelado, já estávamos todos dormindo.
Levindo me acordou quando os faiscadores, de bateia em punho, já se entregavam à faina de revirar o cascalho, ali bem perto. Entre eles e o acampamento havia uma pedra e sobre ela, de cócoras, cachimbando fumo crioulo num pito com fornilho de barro cru e boquilha de taboca, a índia permanecia impassível. Quis perguntar, mas me contive. Precisava ver aquilo mais tempo para poder entender. Então fui com ele tomar a primeira refeição do dia: café e cuscuz com leite, que preparara numa velha panela.
Assim foram passando os dias, sempre com a mesma rotina: alvorada, café da manhã, almoço, sesta de duas horas, trabalho rio acima e rio abaixo até 5 da tarde, jantar e rede. E até o escurecer, a velha lá na pedra, de cócoras, cachimbando. Fora isso, era café da manhã, fugir para trás da moita de vez em quando, voltar para a pedra, cachimbar, jantar e dormir. O velho não a chamava para nada, nem para ajudar a lavar os trens da cozinha.
Passados dez dias, a curiosidade era tanta que não me agüentei. Com a cautela que o assunto merecia, perguntei-lhe qual era, afinal, a serventia da presença da índia naquela empreitada. Sem parar de lavar os pratos, talheres e panelas, apenas me pediu paciência e atenção. Como era um sujeito respeitado naquilo que dizia e fazia, tratei de seguir o conselho.
Na tarde de sexta-feira, décimo primeiro dia, o velho estava cuidando da cozinha enquanto os peões, deitados na rede, aguardando a janta, comentavam os resultados da faiscagem: a descoberta de pelo menos meia dúzia de promissores pontos de garimpagem, onde, nas bateadas, foram encontradas pequeninas pedras à flor do cascalho.
Diomedes, o mais jovem deles, ficou longe da conversa, pensamento perdido no horizonte e o olhar sumido na direção da pedra lisa, às margens do Cotingo. A certa altura, emendando com um suspiro, disparou num quase murmurejo: “Até que índia não é tão feia assim…”.
O garimpeiro ouviu, assuntou e então fez aquilo sobre o que me pedira para esperar. Chamou o pessoal e antes que alguém desse a primeira colherada anunciou: “Amanhã, bem cedo, vamos levantar acampamento”.
E então eu conheci, na sua profundidade, a malícia, a esperteza e a sabedoria do lendário garimpeiro. A índia velha, de cara amarrotada, era, na verdade, o despertador biológico do qual, nessas ocasiões, se socorria o velho Levindo para saber a hora de voltar para casa.”