Imprensa Marrom

Charge para o Jornalistas & Cia

História dessa semana é de Marco Antonio Rossi.

“Em mil novecentos e…. Bem, é melhor não entrar no detalhe do ano… Mas, num certo ponto da minha carreira de repórter, ainda no início dela, havia eu deixado redação do jornal O Dia, de São Paulo, para cumprir um breve período no badalado Jornal da Tarde, do Grupo Estado. Breve porque minha missão era a de cobrir as férias de um repórter da editoria de Economia, à época comandada por Luís Nassif.

Uau, que responsa! De uma hora para outra deixei a humilde redação da avenida Liberdade para ascender ao oitavo andar do edifício do Grupo Estado, junto da Ponte do Limão, resvalando em figurões como Ruy Mesquita, Fernando Mitre, meu quase homônimo Marco Antonio Rocha, Percival de Souza, o deslumbrado Leão Lobo e o meu chefe por um mês, Luís Nassif, à época considerado o “garoto revelação” do jornalismo de Economia.

Trabalhar naquele JT, creio, seria o mesmo que trabalhar num Google nos dias de hoje: gente pra lá de inteligente, criativa, ousada e jovem no jeito, nos trajes e nos sonhos. Respirava-se uma atmosfera modernista, era quase o estado d’arte. Tanto era assim que o pessoal do Estadão, mais sisudo e autista, olhava para a turma do JT com ar de distanciamento interplanetário, como se a gente fosse coisa do outro mundo. Mas, no fundo, nos respeitava.

Pois bem, lá estava eu, nos meus primeiros dias de Jornal da Tarde, obviamente louco para mostrar serviço e revelar todo o meu talento, uma verdadeira pedra preciosa, pronta para ser descoberta e lapidada. Como estreante no jornal, e ainda por cima forasteiro, as pautas a mim passadas eram, digamos, menos impactantes. Numa certa manhã, fui um dos primeiros a chegar á redação (o expediente começava por volta das 11h para os reles mortais) e Nassif já estava lá, envolto nas apurações do escândalo de plantão: o caso da Corretora Tieppo, que na época vinha sendo apurado por Silvio Vieira, uma espécie de Sherlock Holmes do JT, especializado em jornalismo investigativo. Para quem não se lembra do Caso Tieppo, esse foi o primeiro grande escândalo financeiro do Brasil, o nosso primeiro grande crime do colarinho branco. À época, a corretora presidida por José Mario Tieppo captava recursos de grandes investidores paulistas, nomes intocáveis e da mais ilibada reputação, para aplicar no mercado internacional, apesar de isso ser ilegal. O assunto fervilhava na redação e em toda a imprensa.

Cheguei à redação, sentei à mesa em frente à de Nassif, que me olhou e disse: “Marco, requisita um carro e dá um pulo no DOPS. Procura o dr. Gaia e veja o que ele pode dizer sobre o Caso Tieppo”. A frase caiu como uma bomba sobre mim. “Não brinca”, pensei, “estou num grande caso”. Nem abri o jornal do dia, peguei minhas coisas e disparei para o Setor de Transporte. E foi ali que comecei a me meter numa grande fria! No auge do entusiasmo, nem li a matéria publicada sobre o Caso Tieppo. E lá fui eu para o DOPS, na mais reluzente cor laranja!

O tal de dr. Gaia era o temido – ou “respeitado” – dr. Clayde Gaia da Costa, delegado da Polícia Federal, lotado no DOPS – Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo. Sobre a instituição, pairava um ar um tanto sinistro e acusações de prisões arbitrárias e de torturas. Mas não era só na reputação que o DOPS assustava. Suas instalações, com largos corredores e teto alto, móveis pesados e olhares desconfiados, chegava a dar calafrios. E, de repente, lá estava eu, o laranjão do JT, pronto para entrevistar o dr. Gaia, do DOPS.

Fui recebido por uma secretária movida a pilha, que pediu que eu aguardasse sentado num grande banco de madeira escura, com cabeças de sei lá o que entalhadas nos braços de apoio. Enquanto o tempo passava, eu pensava nos inúmeros casos de prisões arbitrárias e desaparecimentos que eram relacionados àquele lugar. Finalmente a enorme porta do gabinete se abriu e a secretária, disse em tom sepulcral: “O dr. Gaia vai recebê-lo agora”. E lá fui eu, gabinete adentro.

Atrás da enorme mesa, que aliás parecia fazer par com aquele banco lá de fora, estava o dr. Gaia. Sorriso simpático, mas com aquele ar de autoridade que só nos tempos de DOPS se via. “Por favor, queira se sentar”, disse ele gentilmente. “Então o senhor é jornalista!” perguntou-me com um sorriso entre os lábios. “Sim, dr. Gaia, eu sou, e gostaria de conversar com o senhor sobre o Caso Tieppo, em que pé estão as investigações”, já fui me abrindo. “E de qual veículo o senhor é?”, indagou o delegado, justamente olhando para um exemplar do JT do dia, que estava sobre a sua mesa.

Confesso que, àquela altura, estava até que um pouco à vontade diante da aparente gentileza, a ponto de responder quase que de bate-pronto: “Sou do Jornal da Tarde”, e dei um sorriso. A propósito, só eu sorri, um sorriso que foi se amarelando na medida em que o dr. Gaia desviava os olhos do jornal sobre sua mesa, erguendo-os em minha direção. Mas, que raio de expressão de ódio era aquela? “Então você trabalha nesse pasquim? Você atua nessa imprensa marrom”?

Caramba, o homem virou um bicho! “Eu vou processar aquele antro de mentirosos!”, esbravejava o dr. Gaia, dando tapas na mesa. “Eu vou prender esse tal de Lagartixa!” (Lagartixa era o apelido do Silvio Vieira) E eu lá, com a alma petrificada, naquela altura do campeonato torcendo para que alguém, na redação, lembrasse que eu havia seguido para o DOPS para fazer uma matéria.

Quase que pedindo desculpas por estar lá, me borrando todo, consegui esboçar uma breve pergunta, buscando uma explicação para aquela histeria compulsiva: “Mas eu não estou entendendo, dr. Gaia. O que houve? Qual o problema?”. E o homem ficava cada vez mais vermelho e transtornado, e eu pensava: “Se não for ele a ter um infarto, certamente serei eu!”

Mas ele fez uma pausa, respirou fundo, ajeitou os cabelos que mais pareciam os de um maestro no auge da função, dirigiu-me um olhar pontiagudo e vociferou: “O que houve? Você quer saber o que houve?”. O meu sorriso amarelo voltou. “Então você trabalha nesse jornaleco e não sabe o que houve?”. Pensei com os meus botões: “Pois é, né? Que cagada, não é mesmo?”.

Bem, o que houve foi que, naquele dia, a matéria do JT afirmava que o dr. Gaia havia se encontrado com o José Maria Tieppo numa situação muito suspeita, insinuando algum um envolvimento entre os dois, uma tentativa de se “quebrar o galho” nas investigações do escândalo. O homem estava uma fera e, claro, tinha que sobrar pra mim, que não tinha lido o jornal.

No final das contas, quase uma hora depois de servir de terapeuta para o dr. Gaia, deixei o DOPS e voltei à redação. Ainda não com uma grande reportagem, mas com uma boa história do “dia em que quase caguei no DOPS”. Ainda não seria daquela vez minha tão sonhada manchete de primeira página no JT. Precisei esperar mais um pouco, mas ela veio, e de novo me meti numa fria. Mas essa é uma outra história.”

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