A Dorothy do Narciso Kalili

Charge para o Jornalistas & Cia

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A história, desta vez, é outra contribuição de Sandro Villar para o Memórias da Redação.

Depois de fazer parte da equipe da revista Realidade, Narciso Kalili, que nos deixou já faz algum tempo, levou seu talento, competência e bom humor para a TV Cultura. Na mais importante televisão pública do País, ele e alguns colegas dos tempos da revista, como Mylton Severiano da Silva, o Myltainho, integravam um time de ponta do Jornalismo. No comando, Fernando Pacheco Jordão. Sandro também desembarcou por lá. Chegou à TV Cultura em 1974, em plena dituradura.

Com todos aqueles profissionais oriundos de revistas, o jornalismo da Cultura logo se destacou como um dos melhores da televisão brasileira. Não tinha perfumaria no telejornal Hora da Notícia. Stanislaw Ponte Preta e Millôr Fernandes eram comentaristas do Jornal de Vanguarda, apresentado por El Cid Moreira, que, ao que parece, nunca arriscou o pescoço por nada.

Um dos méritos da equipe do Jordão foi focar os nossos vizinhos. Argentina, Bolívia e Paraguai, quase que completamente ignorados pelos outros canais, sempre davam as caras na Cultura. A concorrência estava mais preocupada em mostrar o que acontecia nos EUA e na Europa. A epidemia de meningite, que teve a divulgação proibida pela ditadura, foi outro assunto que a equipe abordou destemida e abertamente, sem rodeios. A TV Cultura foi o único veículo de comunicação a desafiar a ditadura e alertar a população sobre a epidemia, que fez inúmeras vítimas. Tal “ousadia” custou caro a Narciso e a Georges Bourdoukan, que se revezavam na chefia de Reportagem. Além de demitidos, eles foram presos pela temida Operação Bandeirantes, Oban para os íntimos.

A encrenca começou no Palácio dos Bandeirantes, docilmente a serviço da “redentora de 1º de abril de 1964”. Autor de A incrível e fascinante história do Capitão Mouro, Bourdoukan teve um arranca-rabo com Henry Aidar, então chefe da Casa Civil do governador Laudo Natel. Eles discutiram e aumentaram o tom ao telefone. “O senhor está querendo alarmar a população”, acusou Aidar. Ao que Bourdoukan contra-atacou, soltando os cachorros: “Alarmar não, nós estamos alertando a população” (sobre a meningite). Logo depois o próprio governador Laudo Natel, certamente depois de solucionar todos os problemas de São Paulo, ligou para Georges Bourdoukan. Ele não aceitou a justificativa do jornalista e ameaçou: “Se o senhor continuar com essas reportagens, vai se arrepender”. No dia seguinte, a ameaça se confirmou com a demissão e a prisão. “Ainda bem que sobrevivemos, nós fazíamos jornalismo de verdade em plena ditadura. Eu soube de pessoas que só não morreram (de meningite) graças ao nosso alerta”, contou Bourdoukan a Sandro

E a tal vDorothy do Narciso? Um belo dia Narciso entrou na redação que, àquela hora, estava às moscas e outros insetos. O telefone tocou. Ele atendeu. Na outra ponta da linha, como diziam os locutores de antanho, um jornalista queria saber qual o filme que a TV Cultura exibiria no dia seguinte. Narciso não sabia, perguntou a colegas próximos se sabiam. Não, ninguém sabia. O que fazer? Talvez atônito, ele olhou atentamente a mesa e, entre jornais e papéis, viu o nome Dorothy escrito num papel. E falou pro colega: “Tudo bem, Dorothy”. “Muito obrigado”, agradeceu o rapaz.

No dia seguinte, um jornal paulistano publicou, segundo um amigo nosso, que o filme da Cultura naquele dia era “Tudo bem, Dorothy”. Ainda bem que o jornalista não entrou em detalhes, querendo saber o ator principal (ou atriz), o diretor e etc. Tudo bem, Dorothy parece nome de peça de teatro escrita por Harold Pinter ou Neil Simon.

Depois dessa brincadeira do Narciso, a expressão virou uma espécie de saudação na redação. Quando um colega cruzava com outro não deixava de perguntar: “Tudo bem, Dorothy?”.

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