Charge para o Jornalistas & Cia
O memórias da redação desta semana tem um tom mais saudosista do que humorístico. O texto é de Plínio Vicente da Silva.
“Pavarotti, Chitãozinho e Xororó
Não sei se foi por fazer bem o que fiz, mas tenho cá comigo que é pelo respeito que sempre dediquei aos animais e às plantas que venho merecendo repetidamente as graças da natureza. Talvez também por isso, desde pequenininho tenho mantido com ela uma relação de trocas, cujos resultados têm ficado no meio a meio: eu ganho, ela ganha. Na infância e juventude por certo ela tolerava meus deslizes: de família pobre, morando no mato, pescava e caçava estritamente para levar pra casa a proteína animal que não dava pra comprar no açougue ou no armazém da vila; por certo também aprova até hoje, quando já vou pela terceira idade, as minhas mesmas virtudes: não aprisiono nem passarinhos nem quaisquer animais. Luto para vê-los livres a fim de poderem me saudar todas as manhãs.
Sou grato por essa relação continuar assim ainda hoje, mais de meio século depois. Mesmo morando num ambiente tipicamente urbano, a vantagem é que aqui, não muito longe, tenho rios e floresta me rodeando e faço dos pássaros meus hóspedes nas fruteiras do quintal. Além deles, vez ou outra alimento pequenos animais, como uma cutia curiosa e a família de tamaris (saguis pretos), ela que constantemente vem à porta da minha casa, eles que vêm de passagem, passeando de copa em copa pelas árvores dos quintais. Mas os passarinhos, ah! os passarinhos… São tantos e tão diversos: sabiás, sanhaços, sanhaçus, sanhaçuíras, corrupiões, cardeais, tucanos, bem-te-vis, araras, aratingas, jandaias, papagaios, maritacas, periquitos, rolinhas, sebinhos, corruíras, cardeais, canários…
Um deles em especial me leva a viajar pelas memórias do passado, quando também na infância fazia dos canários-da-terra e canários-do-reino companheiros de todas as manhãs. Bem cedinho, ao nascer do sol, eles vinham disputar o desjejum – alpiste, ovo cozido e alface – que eu lhes deixava numa cumbuquinha de meia cabaça pendurada sob o telhado do velho forno caipira.
Além dos animais, os rios também sempre fizeram parte da minha vida. Limpos ou sujos. Na primeira infância, o Jacaré, em Nova Europa; depois, até a juventude, o Moji Guaçu, em Guatapará, então limpo e piscoso. Junto com eles vinham os pássaros, muitos deles cantores que me enlevavam e me faziam imaginar como a vida pode ser tão bela com eles e tão vazia sem eles.
Também lá na juventude, enquanto as tardes quentes iam ganhando o frescor da brisa que soprava na boca da noite, rádio de pilhas ligado nas ondas curtas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, eu me entregava a um dos meus prazeres: entreouvir as aventuras de Jerônimo, o herói do sertão com os últimos trilados dos nhambus. Cantos que vinham das palhadas das roças da fazenda, onde, em meio à juquira, eles comiam os grãos espalhados pelo resto perdido da safra recém-colhida.
Tudo isso ficou lá longe quando fui embora pra cidade grande. Em vez do Moji Guaçu, com suas águas cristalinas, encontrei o Jundiai, um esgoto a céu aberto. Em vez da companhia dos nhambus e canarinhos, pardais e pombos; em vez de trilados e trinares melodiosos, pios e arrulhos sem graça nenhuma.
Quando cheguei à redação do Estadão, no final dos anos 70 do século passado, ganhei a companhia de outro rio, o Tietê, igualmente um esgoto a céu aberto. Aprisionado entre as paredes de concreto, aço e vidro, aos meus olhos a natureza se resumia a algumas plantas encravadas em vasos de jardim. Nada mais que isso. E então me senti órfão da liberdade. Nem mesmo quando saía às ruas conseguia encontrar algum vestígio do que deixara no interior. Em vez da mata que circundava o Moji Guaçu, com suas árvores imponentes – faveiros, jacarandás, jequitibás, timburis, copaíbas, perobas, ingazeiras e ipês –, resignava-me com a presença de algumas árvores ornamentais e nada mais além de mamoneiras e capinzais que se espalhavam na beira do rio.
Um dia, no meio do trabalho, por um motivo qualquer tive que ir à Produção. Era a nossa retaguarda, setor do jornal que cuidava de atender as necessidades operacionais da redação. Como, por exemplo, a expedição de requisições de fotógrafos e motoristas, a distribuição de pautas para sucursais e correspondentes, envio e recepção de informações que alimentavam o tráfego entre o interior e o exterior do jornal, entre outras atribuições.
Nas refeições do bandejão eu fizera amizade com pelo menos cinco daqueles que trabalhavam por lá: João Sampaio, Zeca, Antônio, Francisco e Ézio Sertorio, este um amigo especial. Contou-me recentemente que depois de se aposentar, foi brincar de marceneiro com um amigo, “pois a gente tem que fazer alguma para levar a vida antes que ela nos leve”. E me contou mais: “Estou morando na Vila Prudente, um bairro vizinho da Mooca (opa! Estados Unidos da Mooca), onde nasci. Melhor bairro do mundo. Só tem ‘oriundi’, capisci?” Capisco!!!
Ézio tornou-se uma pessoa especial na minha vida porque me fez reencontrar um personagem da minha infância, o canarinho. Ele tinha um que, mesmo preso numa gaiola pendurada no teto, passava o dia cantando. Às vezes cantava noite adentro enganado pelo alumiar das lâmpadas fluorescentes. Não era canário-da-terra, era do reino. Mirradinho, como lembra o Ézio, “cantava como um doido e por isso me deixava preocupado, pois o gogó do danado estufava como um balãozinho. Morreu de velho, com 14 anos”. Seu nome: Pavarotti.
A paixão do Ézio pelos passarinhos é a mesma que eu guardo na alma de menino do interior. A única diferença é que os meus viviam e vivem livres, os dele, aprisionados em gaiolas. Um ato perdoável, pois na selva de pedra só assim mesmo. Além do Pavarotti, Ézio teve outros pássaros. Como um mestiço campainha, 80% branco, com algumas penas pretas e porque era também um grande cantor recebeu nome de Xororó. Tempos depois ganhou outro, também muito bom de gogó e por isso foi batizado de Chitãozinho.
A coleção tinha ainda o Radamés, um corrupião – ou sofrê, como é conhecido no Nordeste. Veio bem antes dos canários. Bicho esperto, vivia livre em casa e até assobiava as primeiras notas do Hino Nacional. E o Chicão, pássaro-preto – ou vira-bosta –, também vivia solto. Gostava de desamarrar o cadarço dos sapatos das visitas. Ézio lembra bem dele: “O danado acabou fugindo quando mudamos para Mairiporã. Acho que por causa de um tiziu que vinha todos os dias provocá-lo. Preso na gaiola pra não incomodar as pessoas, se debatia feito louco na ânsia de querer pegar o invasor. Tanto fez que acabou afrouxando os arames, escapuliu, foi embora e nunca mais voltou”.
Hoje, vivendo aqui na pacata Boa Vista entre dois rios limpos e piscosos – Branco e Cauamé –, que emolduram um dos cenários mais bonitos da Amazônia, sou alegrado todos os dias, o dia todo, por uma ruma de amigos que frequentam as árvores do meu quintal. Aos poucos fui lhes dando os mesmos nomes que um dia o Ézio deu aos seus passarinhos. Ao canarinho, cujas penas brilham como ouro à luz do sol nascente, que ele recebe cantando sempre no ponto mais alto da palmeira acumã, dei o nome de Pavarotti; os dois sabiás, que fazem do ritual de flerte às fêmeas um interminável dueto na copa do caimbezeiro, são Chitãozinho e Xororó; ao bem-te-vi que vive a bicadas disputando os grãos de ração com meus poodles, chamo Chicão; por fim, como aqui também colecionei a amizade de um sofrê, justo então lhe dar o nome de Radamés.
De resto, como a felicidade nunca é completa, às vezes, nas tardes quentes de verão, quando o sol já vai se entregando aos braços do poente, me pego aguçando os ouvidos na direção das várzeas onde estão as lavouras irrigadas de arroz e as palhadas que sobraram da última colheita. Não sei se é obra da minha mais pura imaginação, que vai buscar recordações antigas, mas em meio ao silêncio, quebrado apenas pelo canto melancólico das cigarras agarradas aos troncos das sumaumeiras e castanheiras, pareço escutar o trilar trincado dos nhambus…”
Oyes, que bien eh! Me gusto bastante… regresare pronto!
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