À prova de surdez

Charge para o Jornalistas & Cia.

Essa é daquelas histórias difíceis de saber se é real ou apenas lenda, sobretudo pelos personagens envolvidos.

Corria, sabe-se lá, um ano qualquer entre as décadas de 1960 e 1970 e o cenário era a Folha de S. Paulo, que ainda não era o maior jornal do Brasil, embora fosse já um dos principais. Um de seus editores, que muitos consideravam um dos maiores contadores de “causos” do Jornalismo, era o saudoso José Aparecido, falecido anos atrás em Presidente Epitácio, no interior de São Paulo.
Meio de jornada, lá pelas três da tarde, entra na redação um senhor bem trajado, de estatura mediana, querendo fazer uma reclamação. À sua frente estava o José Aparecido, profissional cortês, atencioso, de fala mansa e um jeito todo caipira de ser.

Sua mesa era a primeira, logo na entrada da redação, e inevitavelmente era a ele, quando ali estava, que as pessoas se dirigiam quando chegavam. Mas como a função dele não era de recepcionista…

Prestativo e sem perder a oportunidade, Zé ouviu o cidadão com a maior atenção, deixou que contasse a sua história, pediu detalhes, mostrou-se solidário e, aliando-se à causa, deu-lhe total razão, concordando que aquele tipo de coisa realmente não poderia acontecer. Finalmente, recomendou àquele senhor que fizesse a reclamação diretamente ao chefão, que era o cidadão que ficava lá atrás, na última mesa, e que, veja só que sorte!, estava ali naquele dia exatamente para ouvir as queixas dos leitores…

Muito agradecido, o homem, certamente sem perceber os vários sorrisos que se esboçaram dos demais colegas nas mesas em volta do Zé Aparecido, pôs-se em marcha, resoluto, para falar com o chefão, cheio de razão, sobretudo após a encorajadora conversa com aquele amigo simpático que o havia recebido.

Deu uns quatro passos quando ouviu um chamado ansioso do Zé Aparecido.

– Ei, senhor! Por favor, por favor, escute…

Imediatamente o homem estancou o passo e virou-se, ouvindo a seguinte recomendação:

– Esqueci de avisá-lo e ainda bem que me lembrei, porque se não o senhor ia passar o maior carão. Fale bem alto, porque ele é muito surdo. E fica profundamente irritado quando falam baixo com ele, porque não consegue escutar direito. Boa sorte!

Falou isso e começou, ato contínuo, a ajeitar papéis na mesa, meio que cronometrando a chegada e a abordagem que seu interlocutor faria com o chefe, por sua recomendação.

Sua mesa era separada da mesa do chefe por uns 30 passos e se houvesse uma câmara filmando e esse filme fosse passado em câmara lenta, poderíamos seguramente afirmar que a cada passo que o homem dava Zé movia-se em direção da escada que dava para a rua.

A redação parou para ver a cena.

O homem chegou em frente à mesa do chefe, parou e, com uma voz muitos decibéis acima do normal, vociferou tonitruante:

– BOM DIA MEU SENHOR, EU VIM AQUI FAZER UMA RECLAMAÇÃO CONTRA O SEU JORNAL!

Foi a maior confusão. O chefe, que estava desprevenido e entretido com uma matéria qualquer, tomou o maior susto e quase caiu da cadeira. Na fração de segundos entre o susto que levou e o que faria com aquele cidadão mal-educado que estava à sua frente, pôde ver os restos de Zé Aparecido escafedendo-se pela escadaria, rumo à rua, e gente por todas as mesas segurando a gargalhada.

Olhando firme para aquele cidadão, que – ingenuamente – o havia afrontado vociferou de volta:

– O SENHOR VÁ FAZER SUA RECLAMAÇÃO PARA O RAIO QUE O PARTA!!! E PONHA-SE DAQUI PARA FORA JÁ, SE NÃO QUISER QUE EU O TIRE AOS TAPAS! E QUANDO QUISER GRITAR, VÁ GRITAR COM A SENHORA SUA MÃE, PORQUE AQUI NINGUÉM É SURDO!!!

O homem, que era moreno, ficou lívido. Suava frio, não sabia onde enfiar a cara e o corpo de estatura mediana. Se pudesse sumir…

Quando tentou explicar que havia recebido a orientação daquele simpático jornalista que o recepcionara, olhou para trás e viu apenas uma mesa arrumadinha e sem ninguém mais por lá, como se tudo aquilo tivesse sido fruto da sua imaginação.

É claro que o mal-entendido acabou desfeito. Mas o Zé Aparecido, que já havia mesmo fechado a sua página, só apareceu no jornal no dia seguinte – prazo suficiente, portanto, para os ânimos se acalmarem e a anedota ganhar relevância sobre a destemperança do chefe.

Consta que o tal chefe teria sido Cláudio Abramo, que está na galeria dos maiores profissionais do Jornalismo em nosso País e cujo indiscutível talento tinha como contrapartida um avassalador mau-humor contra as chamadas “impertinências e incompetências profissionais”.

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