Charge para o Jornalistas & Cia
História enviada por Plínio Vicente da Silva.
Em meados de 1985 Plínio a conheceu. Tinha um olhar nervoso e inquieto, gestos irrequietos, próprios dos que estão permanentemente em busca de algo que não sabem exatamente o que é. Essa era a menininha de então, que circulava entre os adultos como se não existissem barreiras e obstáculos capazes de detê-la e de impedi-la de se libertar do ambiente em que vivia.
Não adiantavam os ralhos da mãe, nem mesmo as ameaças de fazê-la prisioneira no seu quarto. Ela reagia a tudo isso com uma energia extraordinária para uma criança de tão pouca idade, tamanha a intensidade do vigor físico e da agilidade mental.
Era alguém predestinado a se fazer pela genialidade, exclusiva de poucos, cuja dimensão e alcance transformam os escolhidos em lendas e os eleitos em figuras eternas e inesquecíveis.
Os anos se passaram, a vida seguiu em frente e, como é inevitável, as pessoas envelheceram. A menina ranzinza, obedecendo aos ditames do tempo, igualmente foi se transformando, chegando à adolescência. Contudo, com o mesmo vigor e igual impaciência trazidos do passado. Foi essa energia, muitas vezes incompreendida, que a fez romper os grilhões que prendiam sua alma em Boa Vista. Ganhou o mundo e embrenhou-se pelo emaranhado dos caminhos que havia de escolher, pois neles estavam as respostas de que precisava para confrontar as dúvidas que carregava consigo. Valente, corajosa, destemida, as foi desvendando uma a uma até que, finalmente, presenteou sua alma indomável com a liberdade que ela implorava bem lá atrás, ainda na primeira infância.
Foi estudar fotografia na Universidade Nacional da Costa Rica. Lá mesmo aprendeu desenho e depois, de volta a Roraima, entregou-se ao conhecimento da cultura e dos costumes indígenas. Ao poucos foi vencendo as procelas no mar revolto, sua própria vida, e atravessou o oceano que separa o perguntar e o questionar do descobrir e do entender.
Com o passar dos anos se transformou numa sensível pesquisadora, que se lançara em busca de respostas para os segredos que encontrara no universo. Capacidade essa que a fez uma espécie de sacerdotisa da natureza, capaz de decodificar para o olhar dos seres comuns os detalhes mais intrincados dos mistérios que se escondem sob o manto das árvores, da profundeza das águas dos rios e do mais recôndito recanto das almas nativas.
O tempo se foi, os anos percorreram o calendário e a menina, que um dia tive nos braços na vã tentativa de enxugar as lágrimas teimosas, pranto inconformado brotando dos seus olhinhos inocentes, conquistou definitivamente sua liberdade. Não no lavrado e nem nas florestas, mas bem longe, do outro lado do mundo.
Dias atrás, Plínio a reencontrou pela internet. Ana Lúcia Mendina guarda ainda as feições da menina que conhecera certa noite na casa de sua mãe, Vera Regina Guedes, advogada e uma das melhores e mais confiáveis fontes que conquistei como jornalista do norte do Brasil. O olhar continua penetrante, o sorriso segue sendo um misto de perguntas e respostas. Entretanto, o que mais encantou a Plínio, na soma das emoções que esse reencontro lhe provocou, foi saber pelo seu blog – anamendina.blogspot.com – que, além de fotógrafa competente, ela é hoje uma respeitada artista plástica, vivendo bem longe, lá na Oceania.
Depois de morar na Austrália, conhecer os aborígenes e inspirar-se com seus usos, costumes e cultura, mora hoje em Tauranga, uma ilha da região norte da Nova Zelândia. Suas pinturas vêm recebendo elogios quer pela beleza plástica, quer pela criatividade, quer pelo olhar impar que tem para a natureza e os seus elementos. Ao falar de sua exposição, que recebeu o título de Brazilis, o jornal The Wekend Sun destacou que os 14 trabalhos de Ana – que trazem também cenas do imaginário popular urbano tupiniquim –, exploram os diferentes aspectos da cultura brasileira, mas em especial da cultura dos povos da Amazônia. Ao mesmo tempo em que introduz em seus quadros símbolos neozelandeses, ela os usa para conectar a iconografia aborígene do povo maori com aquela que conheceu na convivência com índios do Norte.
Feliz é aquele que no curso da vida tem o privilégio, como eu tive, de ver nascer a genialidade num ser humano como Ana Lúcia Mendina. Sou ainda mais feliz por ter testemunhado, há mais de 26 anos, o alvorecer de um espírito que jamais se rendeu ao óbvio e à mesmice e que, com grandeza, atravessou continentes e travou inúmeras batalhas em busca do seu destino. Mas basta debruçar o olhar em suas telas para a gente perceber que a menina irrequieta continua inquieta. Inquietude que, certamente, é quase toda ela alimentada pelos temores e os tremores que lhe causam os estragos que a humanidade tem feito na natureza, no meio ambiente e no habitat em que os índios ainda conseguem sobreviver no seio das florestas acima e abaixo da linha do Equador.
Ana continua sendo a mesma menina de alma indomável. É o que se pode testemunhar ao visitar o site www.aucklandmuseum.com, espaço sagrado das artes na Nova Zelândia que deu abrigo não só à exposição de seus quadros, mas também à palestra e exibição de documentário em que ela fala apaixonadamente da Amazônia, da sua beleza, dos seus índios e da sua luta pela sobrevivência.